segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O conceito de gênero por Joan Scott: gênero enquanto categoria de análise






Até a década de 80, sobrevivia com força a dualidade entre sexo e gênero, sendo o primeiro para a natureza e o segundo, para cultura. Uma das feministas que mais abalou essa concepção, trazendo novas perspectivas para os estudos de gênero, foi a historiadora estadunidense Joan Scott, quando da escrita de seu célebre artigo Gênero: uma categoria útil de análise histórica (1995), publicado originalmente em 1986.

Seu artigo tornou-se um clássico já quando publicado, sendo indiscutível sua influência não só nos Estados Unidos. Scott inicia o texto chamando atenção para o que ela considera os usos descritivos de gênero: quando apenas se olham para questões envolvendo mulheres e homens sem que se vá muito além.






A historiadora, assumidamente pós-estruturalista, retoma o método de desconstrução do francês Jacques Derrida e busca, de fato, desconstruir vícios do pensamento ocidental, como a oposição tida como universal e atemporal entre homem e mulher (PISCITELLI, 2002). Scott, também influenciada por Michel Foucault, entende o gênero como um saber sobre as diferenças sexuais. E, havendo uma relação inseparável entre saber e poder, gênero estaria imbricado a relações de poder, sendo, nas suas palavras, uma primeira forma de dar sentido a estas relações.

Juntando esses referenciais, Scott conclui que gênero é uma percepção sobre as diferenças sexuais, hierarquizando essas diferenças dentro de uma maneira de pensar engessada e dual. Scott não nega que existem diferenças entre os corpos sexuados. O que interessa a ela são as formas como se constroem significados culturais para essas diferenças, dando sentido para essas e, consequentemente, posicionando-as dentro de relações hierárquicas.

São símbolos e significados construídos sobre a base da percepção da diferença sexual, utilizados para a compreensão de todo o universo observado, incluindo as relações sociais e, mais precisamente, as relações entre homens e mulheres (CARVALHO, 2011). Temos, portanto, a tal utilidade analítica de gênero: a possibilidade de nos aprofundar nos sentidos construídos sobre os gêneros masculino e feminino, transformando “homens” e “mulheres” em perguntas, e não em categorias fixas, dadas de antemão.

O reconhecimento das diferenças entre os corpos não leva, contudo, à manutenção da dicotomia sexo x gênero. Pois, se o corpo é sempre entendido a partir de um ponto de vista social, o conceito de sexo estaria subsumido no conceito de gênero(NICHOLSON, 2000). Logo, não faria sentido pensar o sexo como pertencente à natureza, esta inquestionável, porque a própria separação entre natureza e cultura já seria um produto cultural.

E, na opinião da historiadora, como se daria essa construção? Talvez esse seja justamente o seu ponto fraco – até porque é exatamente onde mais recaem as críticas –, mas Scott deixa a cargo principalmente da linguagem e do discurso. Para ela, é um universo simbólico que organiza socialmente aquilo que podemos enxergar nos corpos, nas relações sociais etc. Fico devendo, nesse momento, um aprofundamento nesta questão por motivo de espaço.





Fonte: Ensaios de Gênero

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Cartilha LGBT



Esta imagem é uma das paginas da Cartilha LGBT´s elaborada pelo cartunista Luis Augusto para a Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Estado da Bahia.A cartinha em formato de historia em quadrinho vai aborda saúde,educação, segurança, trabalho,cidadania, justiça,cultura e turismo, contextualizando as situações vivenciadas pela comunidade LGBT´s. O projeto se destina aos servidores públicos baianos para ajudar a melhorar á comunidade LGBT´s nas repartições publicas.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

De quem sou filho?


                                
Por Maria Berenice Dias

Ao menos até o atual estágio da ciência genética, todas as pessoas são filhas de uma mulher. Todos são gerados no ventre de uma pessoa do sexo feminino. Esta sempre foi uma verdade tão evidente que é latina a expressão: mater semper certa est. A mãe é sempre certa.

Quanto à paternidade, a verdade nunca foi tão evidente, ou melhor, tão aparente. Mas a necessidade de se certeza do vínculo de filiação paterna impôs uma série de pressuposições de modo a chegar-se a uma presunção. Para dizer que o pai sempre é o marido da mãe, foi preciso fazer as mulheres acreditarem que a virgindade tinha valor. Ou seja, manter íntegro o hímen lhe garantia a condição de pessoa séria e honesta. Pureza, castidade e recato davam às jovens a garantia de que iriam conseguir subir ao altar. Sempre foi este o dado que as diferenciava das chamadas mulheres de “vida fácil”. Qualidade que nunca ninguém conseguiu entender muito o porquê. A tarefa delas, aliás, sempre foi das mais áridas: assegurar prazer sexual sem qualquer contra partida, a não ser de natureza financeira. Mas certamente pagavam um preço muito caro: viver à margem da sociedade. Recebiam toda a sorte de adjetivações para lá de desrespeitosas e, claro, não tinham o direito de amar. Não podiam sequer embalar o sonho de casar com quem se deliciava com suas carícias. Na eventualidade de ocorrer gravidez – algo muito frequente antes do surgimento dos métodos contraceptivos – era impositivo que abortassem. Afinal, o filho jamais poderia ter um pai, um nome, uma família. Esta marginalização, aliás, era consagrada legalmente, o que deixava os homens em situação para lá de confortável. Os filhos havidos fora do casamento eram considerados ilegítimos, bastardos. Eram condenados a serem filhos da puta.

A necessidade de as moças casarem virgens era imposta pelos costumes. O lençol manchado de sangue era exposto no balcão da casa, motivo de júbilo para as famílias dos noivos. Também nesta seara havia a interferência da lei. A ausência da virgindade configurava erro essencial de pessoa e garantia ao marido o direito de pedir a anulação do casamento.

Mas havia mais um ingrediente para garantir a certeza da paternidade. A mulher casada precisava manter uma postura de recato e seriedade. Seu lugar era o lar, para dirigir a casa, criar os filhos e cuidar do marido. Este se tornava o seu senhor. A lei o considerava o cabeça do casal, o chefe da sociedade conjugal. Mas tinha mais. Por décadas, a mulher ao casar, perdia a plena capacidade, ou seja, restava meio idiota. Nada podia fazer sem a assistência do marido. Sequer podia trabalhar “fora” sem sua expressa autorização.

Assim ficava fácil. Se o homem casava a com uma virgem, que nada podia fazer sem a sua aquiescência e a mantinha refém no lar, claro que o filho que ela tivesse só poderia ser filho dele. Esta ilação transformou-se em presunção legal. Até hoje o marido pode, sem a presença da esposa, registrar o filho como seu. Basta comparece ao cartório acompanhado de duas testemunhas munido de uma certidão de casamento e da declaração de nascido vivo fornecido pela maternidade. Já a mãe não pode registrar o filho em nome do marido se ele não se fizer presente no cartório.

A possibilidade de registro pelo pai existe no casamento, mas não na união estável. O companheiro, ainda que tenha em mãos um contrato de convivência ou até uma sentença declaratória de união estável, não pode proceder ao registro do filho. Nada disso basta. Já o casado nem precisa comprovar a concordância da mãe para tornar-se pai. A explicação é para lá de bizarra: no casamento existe dever de fidelidade enquanto na união estável o compromisso é só de lealdade. De qualquer modo, esta esquisita presunção nem é de paternidade, mas de fidelidade da mulher ao seu marido.

Mas se tudo isso era necessário pela dificuldade em saber quem é o pai de alguém – até porque, em nome da moral e dos bons costumes relações sexuais acontecem a descoberto de testemunhas – dois acontecimentos não permitem que persistam estas práticas. Primeiro foi o surgimento da possibilidade de o vínculo parental ser afirmado com alto grau de certeza. A partir da identificação do código genético, através do exame do DNA, nada existe de mais seguro para dissipar qualquer dúvida do genitor.

Esta descoberta teve efeito de outra ordem. Sepultou de vez o tabu da virgindade, que perdeu significado como elemento qualificador da mulher. Sua honradez não mais depende da integridade e seu hímen. De outro lado, nas ações investigatórias de paternidade, a alegação de que a mãe poderia ter tido contato sexual com mais de uma pessoa – argumento conhecido pela feia expressão exceptio plurium concubentium – deixou de servir de justificativa para a improcedência da ação. A vida sexual da mãe não cabe ser invocada como meio de defesa.

O outro acontecimento revolucionário foi o surgimento das técnicas de reprodução assistida. As pessoas não mais são frutos exclusivamente de uma relação sexual entre um homem e uma mulher. Bancos de sêmen, fecundação in vitro, gestação por substituição fez pluralizarem os vínculos parentais. Hoje em dia para alguém ser pai ou ser mãe não precisa ter um par.

Agora nem mais a maternidade é certa. Mãe passou a ter adjetivos. Nem sempre a mãe biológica é a mãe gestacional. E talvez nenhuma delas seja de fato a mãe registral. Ou seja, mãe não é somente aquela que teve um óvulo fecundado e nem quem o carregou no ventre por nove meses. Para ser mãe nem é preciso participar do processo reprodutivo. Mãe é quem deseja ter um filho. É o que basta para ser reconhecido o direito de registrar como seu o filho que não deu à luz e nem tem sua carga genética. O mesmo acontece com relação ao pai. Deixou de ser exclusivamente o marido da mãe.

Assim, estão sepultadas as presunções de parentalidade. Principalmente a partir do reconhecimento das uniões homoafetivas, a quem a justiça assegurou acesso ao casamento. Resolução do Conselho Federal de Medicina autorizou o uso das técnicas de procriação assistida aos parceiros homossexuais. A persistir tais presunções, por elementar princípio da igualdade, não é possível impedir que seja registrado como de ambos, o filho do casal de homens, ou de mulheres. Caso eles sejam casados, vivam em união estável ou comprovem terem se submetido às técnicas de reprodução assistida, é o que basta para procederem ao registro da dupla maternidade ou paternidade.

Não há forma mais humana, ágil, efetiva e afetiva para que crianças saibam desde sempre de quem são filhos!

Por

Maria Berenice Dias

Advogada especializada em Direito das Famílias

Vice-Presidenta Nacional do IBDFAM

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

TRÊS DOCUMENTÁRIOS SOBRE DIVERSIDADE SEXUAL

Leve-me Pra Sair, O Segredo dos Lírios e Não Gosto de Meninos contam as experiências e o processo de aceitação de jovens gays




DOCUMENTÁRIO "LEVE-ME PRA SAIR" CONVERSA COM 10 JOVENS HOMOSSEXUAIS 


Assumir a homossexualidade hoje é mais fácil do que já foi um dia, mas o preconceito ainda existe e continua sendo um empecilho para jovens que estão descobrindo a sua sexualidade. Nessa mistura de maior aceitação sem ignorar o ainda existente preconceito, documentários com a temática gay foram produzidos a fim de entender o processo de descobrir-se e assumir-se homossexual e, mais importante ainda, de disseminar essa escolha com normalidade.

1. LEVE-ME PRA SAIR
10 jovens gays bem resolvidos com a sua sexualidade são questionados com uma série de perguntas. Eles comentam desde como revelaram a opção sexual para a família até se ser gay define quem eles são.
É um documentário que inspira. São pessoas que se aceitam do jeito que são, mesmo que para isso tenham de enfrentar dificuldades causadas pelo velho preconceito.




2. O SEGREDO DOS LÍRIOS
E como as mães lidam quando ficam sabendo que a filha gosta de meninas? No documentário O Segredo dos Lírios, três mães gaúchas contam como foi o processo de aceitação da opção sexual de suas filhas. Sensível e sincero.



3. NÃO GOSTO DOS MENINOS
Mais de 40 pessoas, entre jovens e adultos, contam as suas histórias e conflitos pessoais, familiares e sociais pelos quais passaram por ser homossexuais. 

“A escola ainda é um espaço homofóbico e transfóbico”, diz Marina Reidel


Marina defendeu na semana passada sua dissertação de mestrado, intitulada “A pedagogia do salto alto – Histórias de professoras transexuais e travestis na Educação Brasileira” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Débora Fogliatto e Samir Oliveira

Marina Reidel é a primeira mulher transexual a conquistar o título de Mestre pela Faculdade de Educação da UFRGS. A professora defendeu sua dissertação na sexta-feira (23), em Porto Alegre, diante de um auditório lotado de acadêmicos, autoridades e ativistas da comunidade LGBT.

Intitulada “A pedagogia do salto alto – Histórias de professoras transexuais e travestis na Educação Brasileira”, a pesquisa estuda a inserção de sete professoras trans em escolas de diferentes regiões do país.

Nesta entrevista ao Sul21, Marina Reidel comenta sobre a realização do seu trabalho e afirma que a escola é um ambiente homofóbico e transfóbico que precisa se reinventar. Ela conta que o maior desafio enfrentado pelas professoras trans vem justamente do preconceito de seus colegas professores – e não de pais ou alunos da comunidade escolar. “Os professores ainda não estão preparados para lidar com essas questões”, lamenta.

Marina Reidel é natural de Montenegro. Licenciada em Artes Visuais, com pós-graduação em Psicopedagogia, ela trabalhou com alfabetização e educação infantil durante dez anos. Atualmente, ainda trabalha como professora de Artes na Fundarte, em Montenegro. Também é assessoria da Coordenadoria da Diversidade da prefeitura de Canoas.
“Quando eu me transformei, achei que era a única professora trans do país. Mas existiam outras e eu comecei a conhecê-las”


Sul21 – Como iniciou a tua trajetória na área da educação?
Marina Reidel – Sou natural de Montenegro e sou professora há 23 anos – 10 anos enquanto professora transexual. Atualmente, sou professora de Artes da Fundarte, em Montenegro, onde atuo há 20 anos. Foi lá que eu passei pelo processo de transformação, assim como na Escola Estadual Rio de Janeiro, em Porto Alegre. Eu já saí da escola Rio de Janeiro, mas continuo trabalhando em Montenegro como professora de Artes Visuais. Dentro do projeto de ações comunitárias da Fundarte, atuo numa vila carente com crianças pequenas, de 7 a 10 anos. Elas me chamam de “professora pinheirinho”, porque estou sempre cheia de colares. Também atuo como arte-terapeuta dentro de um Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS).

Marina: “Quando fiz minha transformação, comecei a circular mais no mundo trans e no mundo LGBT. Comecei a ficar mais ativista” | Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – E como foi a aceitação, nestes ambientes profissionais, do teu processo de transformação?
Marina - Nunca tive nenhum problema ou questionamento dentro desses projetos. Fui convidada a ir na escola e a diretora me colocou na frente de 100 alunos e disse: “agora perguntem tudo o que querem saber da professora Marina, porque depois não quero saber de fofoca”. E então começaram a perguntar coisas bobas, se eu era casada, se tinha cachorro… Ninguém perguntava sobre as questões que eu sabia que eles tinham curiosidade. E então algum aluno mencionou que estão estudando borboletas, e eu disse: “agora vai começar a minha aula”. Aí falei sobre toda a história do casulo que vira borboleta. Hoje chego lá e eles vêm, me abraçam, me beijam, não têm problema nenhum.

Sul21 – O ambiente escolar lidou bem com essa mudança?
Marina - Foi todo um repensar. A escola repensou, assim como a própria Fundarte. Foi tranquilo, mas sempre se espera o pior. Até por ser uma cidade do interior. Não fui expulsa de lá, porque não havia assumido publicamente a minha identidade de gênero. Eu saí de lá como “homenzinho”, de calça jeans e camiseta, e retornei no salto. Mas foi tranquilo, não houve nenhum problema. Claro que as pessoas sabiam, a direção da escola sabia. Houve toda uma construção para “preparar o campo”. Quando eu retornei os alunos já sabiam desse processo. Houve uma repercussão e uma expectativa dos alunos de como eu retornaria. Mas não houve nenhum questionamento de pais nem de alunos.

Sul21 – Como tu chegaste ao tema da tua pesquisa de mestrado?
Marina - Quando fiz minha transformação, comecei a circular mais no mundo trans e no mundo LGBT. Comecei a ficar mais ativista. Dentro do movimento, tivemos a ideia de criar uma rede de professores transexuais e travestis no Brasil. Quando eu me transformei, achei que era a única professora trans do país. Mas existiam outras e eu comecei a conhecê-las dentro dessa perspectiva. Quando fiz a prova do mestrado, a minha ideia era envolver essas pessoas. Talvez para dar mais visibilidade, mostrar que elas existem e que as trans não estão só nas calçadas. Não sou contra a prostituição, pelo contrário, tenho respeito. É o único caminho que muitas têm em um país como o nosso, onde as pessoas não abrem as portas para travestis e trans trabalharem. Ou elas fazem um concurso público, ou são cabeleireiras, ou fazem enfermagem, ou são profissionais do sexo.
“No Rio Grande do Sul já encontrei 12 professoras trans e um professor trans. É o estado onde mais encontrei professoras trans”


Sul21 – A licenciatura tem sido uma nova escolha profissional para trans e travestis?
Marina - Comecei a me dar conta que essas pessoas estavam em outros espaços, inclusive na escola. Quando entrei no mestrado, comecei a pesquisar e mapear essas pessoas junto à Rede Trans Educ Brasil. Na época, eram 40 professoras. Hoje existem mais de 80. Existem até trans que são diretoras de escola.

Professora viu no salto alto uma metáfora unindo trans e travestis: “Eu mesmo, quando ia para a escola, os alunos identificavam passando pelos corredores” | Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Como foi o contato com essas professoras?
Marina – Eu entrevistava as professoras nos eventos do movimento trans e do movimento LGBT. Encontrei também gestoras em secretarias de educação; professoras de escola; diretoras… Algumas têm profissões paralelas, mas continuam sendo professoras. Elas não estão só dentro da sala de aula, estão em outros espaços significativos, como secretarias de educação.

Sul21 – Como surgiu a ideia da “Pedagogia do Salto Alto”?
Marina – Quando entrei no mestrado e propus o tema, o meu orientador achou excelente a ideia de buscar as professoras, de ver outras histórias. Criei essa metáfora da “pedagogia do salto alto”, e ele achou excelente. Toda trans e travesti adora um salto alto. Comecei a perceber que essa metáfora poderia provocar algumas questões. Eu mesma, quando ia de salto para a escola Rio de Janeiro, os alunos já brincavam e me identificavam passando pelos corredores.

Sul21 – A tua pesquisa envolveu somente trans mulheres?
Marina – Quando eu comecei a mapear, só encontrava professoras trans mulheres. Depois, quando já estava com a pesquisa quase pronta, encontrei alguns professores trans homens. Um no Rio de Janeiro e outro aqui em Porto Alegre. Eles ainda são um número mais reduzido.

Sul21 – Quantas pessoas estão incluídas na pesquisa e de que regiões do país?
Marina – Oficialmente, entrevistei sete professoras trans das regiões Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste. Mas já mapeei de norte a sul do país. No Rio Grande do Sul já encontrei 12 professoras trans e um professor trans. É o estado onde mais encontrei professoras trans. No Paraná e em Minas Gerais também existem muitas. Em termos de cidade, elas estão bem espalhadas. Existem professoras trans na fronteira gaúcha com o Uruguai e em grandes cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo. Também encontrei professoras trans no Sertão do Nordeste. Em Belém, no Pará, encontrei duas professoras transexuais que são irmãs e fazem matemática.
“Todas mostraram, também, que foi na família onde enfrentaram os maiores problemas, principalmente em relação à figura paterna”


Sul21 – E como foram os relatos das histórias de vida das pessoas que tu entrevistaste?
Marina – As histórias de vida vão desde a infância até o momento em que eu as entrevistei. Todas passaram pela questão de terem a expressão de gênero feminina na infância. De querer brincar de casinha, de boneca, enfim, com elementos associados ao feminino e à maternidade. Todas mostraram, também, que foi na família onde enfrentaram os maiores problemas, principalmente em relação à figura paterna. Tem pais que passaram dez anos sem falar com a filha por não aceitar. Outra menina teve que esperar seu pai desenvolver uma doença grave, como Alzheimer, para poder se assumir – já que ele não era mais capaz de identificá-la. E teve uma mãe que colocou fogo nas roupas femininas da filha ao descobrir que ela era trans. Aconteceram as coisas mais absurdas com essas pessoas. Teve uma menina que foi expulsa de casa com 13 anos. Esse é o mundo trans, é o mundo em que vivemos. As meninas são expulsas de casa muito cedo e fogem da escola. O interessante nas professoras trans é que elas lutaram para permanecer estudando. Muitas tiveram que se esconder no armário por muito tempo.

“Esse é o mundo trans, é o mundo em que vivemos. As meninas são expulsas de casa muito cedo e fogem da escola” | Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – E que tipo de dificuldade essas mulheres encontram no ambiente escolar?
Marina – Identifiquei na pesquisa que elas não sofreram nenhum tipo de agressão por parte de alunos e pais na comunidade escolar. O problema foi com os colegas professores e as direções. A escola ainda é um espaço homofóbico e transfóbico. Os professores ainda não estão preparados para lidar com essas questões. Eles não foram preparados para isso porque as universidades não trabalham essas questões. Hoje em dia ainda existem algumas discussões, mas quando eu concluí minha formação, há 12 anos, jamais esse assunto era abordado.

Sul21 – E a relação dessas professoras com os alunos e pais?
Marina – A partir do momento em que elas ingressam neste espaço chamado escola, começam a se tornar um referencial. Lembro do meu tempo como professora, quando eu cheguei na escola no salto, toda montada. Primeiro surgiu aquele auê, aquele burburinho. Nas primeiras aulas, obviamente tive que falar sobre isso. Os alunos perguntam bastante, principalmente os adolescentes, que são mais curiosos. É preciso ter jogo de cintura para saber até onde é possível lidar com essas questões. Tu começas a perceber, neste processo, que os alunos também começam a te contar certas coisas que dizem respeito à sexualidade deles. Lembro que uma aluna me contou que estava grávida, quando não tinha nem contado para a mãe dela. Então eles compartilham suas histórias, expõem suas dúvidas. É o momento que eles têm para falar. O professor não pode abrir mão disso. Todas as professoras trans contaram que são um referencial para os alunos. Isso gera a situação na escola em que tu és solicitada o tempo inteiro para tentar resolver os problemas de homofobia e preconceito.

Sul21 – A presença de professoras trans pode contribuir para diminuir a homofobia, transfobia e outros preconceitos nas escolas?
Marina – Com certeza. O preconceito vai acontecer quando as pessoas não têm conhecimento. A partir do momento em que o aluno viu que eu não era um monstro, houve uma mudança, ele entendeu a questão da transexualidade. Nas minhas aulas nunca aconteceram problemas. E a escola em si começa a mudar com a presença de professoras trans. A escola e o aluno começam a se sensibilizar com essas questões.
“A população trans começa a ser desrespeitada já no próprio nome. O nome social precisa ser respeitado”


Sul21 – Que medidas tu achas que os governos, em todas as esferas, podem implementar, em termos de políticas públicas, para combater a homofobia nas escolas?
Marina – São tantas coisas… Mas começa pelo princípio de que é preciso trabalhar com os profissionais da educação. E também favorecer um material condizente com a realidade. Os livros didáticos de Biologia mostram que “homem é isso, mulher é aquilo”. É preciso construir propostas e políticas em favor das questões de gênero. Em Canoas, estamos nos inserindo na educação em um trabalho transversal, assim como na saúde. Estamos instrumentalizando colegas professores sobre estes assuntos. Os governos também poderiam incentivar que as empresas abrissem as portas para profissionais trans. As meninas querem trabalhar. Aqui em Canoas, conseguimos, com a ajuda da Secretaria de Direitos Humanos, formar uma turma de trans pelo Pronatec. Elas vão iniciar um curso para se tornarem cabeleireiras. A maioria é profissional do sexo e quer fazer outra coisa. Esses estímulos devem ser colocados para que haja uma inserção no mercado.

Mestre em Educação pela UFRGS, Marina Reidel defende que é preciso construir propostas e políticas em favor das questões de gênero | Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – As faculdades também precisam formar seus profissionais de forma mais sensível às questões de gênero?
Marina – Sim, em todas as áreas. O Direito principalmente, assim com a Medicina. Os médicos muitas vezes não querem atender pessoas trans e travestis. Urologista não quer atender travesti, assim como ginecologista não quer atender a mulher transexual que fez a cirurgia. A população trans começa a ser desrespeitada já no próprio nome. O nome social precisa ser respeitado. Outro problema é o banheiro, principalmente nas escolas públicas. Qual o problema de as trans utilizarem o banheiro feminino? Se elas entrarem no banheiro masculino, serão agredidas e constrangidas.

Sul21 – Qual a tua opinião sobre a carteira de nome social? Há pessoas que criticam por dizer que não é o suficiente, que o nome deveria ser trocado na carteira de identidade.
Marina – Só quem não está na pele (faz essa crítica). Claro que é uma medida paliativa, mas foi uma demanda que veio da própria conferência estadual LGBT. A carteira social hoje é uma realidade para muitas travestis que não conseguem alterar o nome. Eu usei a carteira durante um ano enquanto fazia o processo de troca de nome no documento de identidade. A partir daquele momento eu me senti respeitada. É preferível entregar essa carteira, que possui o meu nome, Marina, do que entregar um documento onde aparece o nome do falecido (referência ao nome masculino que recebeu), onde as pessoas irão olhar para a foto e não irão entender nada. Para as mulheres trans e travestis, é muito humilhante chegar em um lugar ser chamada de “João” ou “Carlos”. Sempre que isso acontecia, em alguma situação de atendimento, eu ficava sentada. Nunca levantei quando me chamavam pelo meu nome civil. Eu pedia para me chamarem pelo nome social, mas, às vezes, as pessoas chamavam pelo nome civil de propósito. Eu ficava sentada. Depois de umas quatro ou cinco vezes, levantava e dizia que não tinha sido chamada, fazia um baile. Então a carteira social é um documento emitido pelo governo, as pessoas precisam entender que se trata de uma política afirmativa. Claro, o ideal, o que todas nós queremos, é a alteração do nome. Existe um projeto neste sentido tramitando no Senado, só que ainda não foi aprovado, ao contrário da Argentina, que está anos-luz na nossa frente.

“Nunca levantei quando me chamavam pelo meu nome civil. Eu pedia para me chamarem pelo nome social, mas, às vezes, as pessoas chamavam pelo nome civil de propósito. Eu ficava sentada” | Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Tu conseguiste trocar o nome na carteira de identidade. Foi um processo muito trabalhoso?
Marina – Foi com o pessoal do Serviço de Assistência Jurídica Universitária da UFRGS (SAJU), em um projeto em parceria com a ONG Igualdade e o NUPSEX (Núcleo de Pesquisa em Gênero e Sexualidade). Eles deram os pareceres, que são caríssimos. Os psiquiatras cobram uma fortuna. Neste projeto, os pareceres saíram de graça, então em um mês conseguimos alterar o nome. Nove pessoas entraram com o pedido na Justiça. Acho que o juiz ficou com medo de apanhar das travas e alterou rapidinho (risos).
“A Rede Trans Educ Brasil é sem fins lucrativos, não tem dinheiro para nada, nem apoio do governo. Às vezes eu bato na porta de um ministério e fecham a porta na minha cara”


Sul21 – Tu pensas em estender a pesquisa de mestrado para um doutorado?
Marina – Penso. Essa ideia da pedagogia do salto alto vai ser incorporada pela Rede Trans Educ Brasil. Teremos um encontro nacional das trans em Curitiba e eu vou propor que estudemos essas ideias para termos um referencial teórico sobre essas questões. Algumas professoras trans dizem que se sentem uma ilha. Acreditam que são as únicas professoras trans em suas cidades e em seus estados.

“Algumas professoras trans dizem que se sentem uma ilha”, afirma Marina, que pretende expandir estudos via Rede Trans Educ Brasil | Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Como funciona a organização da Rede Trans Educ Brasil?
Marina – Por enquanto, eu sou coordenadora da rede. Estamos criando um estatuto. É tudo muito devagar. Já criamos uma página no Facebook e estamos nos dividindo em pequenos grupos de trabalho. Estamos começando a andar. É uma rede sem fins lucrativos, não tem dinheiro para nada, nem apoio do governo. Às vezes eu bato na porta de um ministério e fecham a porta na minha cara. Já temos algumas propostas, talvez façamos um encontro estadual aqui em Porto Alegre em 2014. Ainda não temos data para o próximo encontro nacional. Talvez em Curitiba consigamos reunir um maior número de professoras.

Sul21 – Qual a tua função atualmente na prefeitura de Canoas?
Marina – Vim para cá neste ano. Fui convidada para ser assessora de Diversidade, da Coordenadoria de Diversidade. Existem seis coordenadorias ligadas ao gabinete do prefeito que lidam com direitos humanos. A nossa lida com diversidade sexual e religiosa. Além disso, ainda sou funcionária pública do estado. Estou afastada desde o ano passado. Também trabalhei na Secretaria Estadual de Educação, com formação de professores.

“O preconceito vai acontecer quando as pessoas não têm conhecimento. A partir do momento em que o aluno viu que eu não era um monstro, houve uma mudança, ele entendeu a questão da transexualidade” | Ramiro Furquim/Sul21

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Quarto encontro: Família e a escola

Programação do encontro com os professores
Grupo de Ação e Formação Múltiplas Sexualidades
01 de agosto

18H - Abertura e acordo sobre o programa

18h20 - Teatro Fórum "O que é que ele/a é?  Camila Oliveira, Camila Carmo e Kiki

19h40 - Intervalo

20h20 - Debate a partir do texto "Homofobia nas Escolas: um problema de todos"

terça-feira, 30 de julho de 2013

28 escolas de ensino médio de Pernambuco combatem o machismo e a homofobia


                         
                  Na Escola Professor Trajano de Mendonça, balões e cartazes decoram a Semana Rosa e Lilás

PE: alunos discutem homofobia e machismo para romper preconceitos
Núcleos de estudo de gênero criados em 28 escolas de ensino médio de Pernambuco ajudam a combater a discriminação

As discussões sobre machismo e homofobia estão nas redes sociais, na TV, nos jornais e não poderiam ficar muito tempo longe da escola. Com o objetivo de promover ações de formação e pesquisa em gênero e educação e incentivar alunos e professores a debaterem estes temas, Escolas Referência de Ensino Médio (Erems) de Pernambuco implementaram, desde o ano passado, Núcleos de Estudos de Gênero e Enfrentamento da Violência Contra a Mulher. Fruto da articulação entre a Secretaria da Mulher e a Secretaria de Educação com as escolas de nível médio, a iniciativa já alcança 28 instituições de ensino do Estado.

Localizada em Jardim São Paulo, na zona oeste do Recife, a Erem Professor Trajano de Mendonça é uma das participantes do projeto. Professores e alunos de diferentes séries e disciplinas formaram o Grupo Margarida Maria Alves de Estudos de Gênero. Coordenadora do grupo e professora de português da instituição, Rosário Leite explica que a escola já tinha um projeto que tratava do tema desde 2011 e, por conta disso, recebeu o convite da Secretaria da Mulher para implantar o núcleo ainda no ano passado. "Ele nasceu com a proposta de discutir a violência contra a mulher, já que o Estado de Pernambuco tem um alto número de casos de agressão contra mulheres, inclusive com mortes. Conforme fomos angariando parceiros, ampliamos o debate para questões de outros gêneros", conta.

Segundo Rosário, o núcleo ainda está em fase inicial. As reuniões ocorrem quinzenalmente, em contraturno, e não são obrigatórias. "É uma atividade voluntária", comenta. Nos encontros, os alunos debatem temas como machismo e homofobia a partir de filmes, notícias, leituras e relatos de experiência. A temática não fica restrita aos debates. "A ideia é trazer essa discussão de gênero para a sala de aula também de forma que perpasse todas as disciplinas, fazendo pontos de intersecção. Queremos trazer para o dia a dia mesmo, pois quanto mais presente a discussão, mais fácil combater a violência", afirma.

A escola também incentiva que os alunos participem de concursos de redação sobre temáticas de gênero. "É muito importante participar de eventos escolares, fazer debates nas salas, oficinas, seminários e palestras", diz Rosário. O marco das discussões, de acordo com ela, é março, na Semana da Mulher, um período especial, com atividades envolvendo toda a escola. "Ampliamos o foco, saímos da questão da violência doméstica e passamos a abordar a diversidade sexual e a questão da igualdade de gêneros. Com o núcleo, os alunos passam a ser sujeitos dessa ação, a ideia é que se transformem em multiplicadores dessa questão contra a violência", completa.

Na Trajano de Mendonça, este período ficou conhecido como Semana Rosa e Lilás, na qual alunos e professores usam peças de roupa nestas cores, além de decorar a escola com balões e cartazes. "Também é realizada uma série de encontros. Nós trazemos voluntários para darem palestras. Neste ano, por exemplo, a semana foi aberta com a discussão sobre homofobia, e finalizamos discutindo violência de gênero no mundo inteiro", diz.

Dos cerca de 700 alunos da escola, entre turmas do nono ano e do ensino médio, participam regularmente dos encontros quinzenais em torno de 20. "Nem sempre são os mesmos. O grupo todo trabalhando chega a 90 alunos diretamente engajados, fora os professores", afirma Rosário. Além disso, a escola mantém um grupo de discussões no Facebook, onde os alunos postam e comentam sobre temas relacionados.

A mudança no tratamento entre os colegas, bem como a conscientização e a formação de multiplicadores contra a violência de gênero, são o resultado da implantação do núcleo. "Isso se reflete até nas famílias, muitos pais passaram a apoiar o projeto", diz. As reuniões auxiliam no desenvolvimento dos alunos e na formação social. "É muito importante para nós que todos participem. Os professores, por exemplo, vão sempre vestidos de rosa na Semana Rosa e Lilás. Ver outros homens usando esta cor, já faz esses alunos enxergarem a questão de outra forma", relata. 

Rosário conta que ainda há brincadeiras e provocações eventualmente na sala de aula ou no intervalo. "Isso acaba repercutindo entre os alunos e vira debate. Os estudantes tornam-se vigilantes. E queremos isso: que conversem sobre o tema, que não seja necessário uma advertência do professor", aponta.

Futuro com menos preconceito

Hoje aos 18 anos, Emanuela Sibalde participou do núcleo desde sua implantação. "Adquiri conhecimento sobre o assunto. A violência contra a mulher é uma realidade que muita gente desconhece. Com o núcleo, debatemos isso e formamos nossa opinião", avalia. A jovem nota que os meninos passaram a respeitar mais as mulheres e as próprias meninas após a discussão em sala de aula. Também acredita que incentivar o debate irá diminuir o preconceito. "Para o futuro, vai ser melhor. Tendo consciência de que somos todos iguais, acredito que vai diminuir o preconceito e a violência contra a mulher", opina.

Os números que indicam o preconceito contra homossexuais, porém, ainda assustam, conforme as estatísticas do Instituto de Pesquisa Maurício de Nassau (IPMN). Levantamento realizado em 26 escolas públicas, em junho, mostrou que mais da metade dos entrevistados, com entre 14 e 20 anos, não são favoráveis à união homossexual, enquanto 30,9% são a favor e 14,8% são indiferentes ao tema.